Leilão de arroz: um enredo burlesco em meio à tragédia climática

 

Uma das formas de avaliarmos o desempenho de um governo é verificarmos a sua real capacidade de realização da gestão da coisa pública. E não há gestor público que consiga mostrar a eficiência de seu trabalho sem levar em conta a objetiva análise do cenário real para planejamento de ações em curto, médio e longo prazos.

Se formos medir a capacidade de gestão do Ministério da Agricultura e Pecuária no recente caso da importação de 300 mil toneladas de arroz, via leilão, a um custo de R$ 1,7 bilhão, apresentando como pano de fundo a tragédia climática do Rio Grande do Sul, fica claro que a supervisão técnica sucumbiu diante da pressão política.

Desde o primeiro instante, a decisão de importação de grãos transpareceu como algo descolado da realidade, com o governo construindo uma narrativa típica do Teatro do Absurdo, cujo principal expoente foi o franco-romeno Eugène Ionesco, falecido em 1994, que aplaudiria de pé.

Nos seus enredos, Ionesco enfatizava situações banais e frases feitas, expondo situações grotescas, sem sentido, que levavam o público a traçar paralelos com a vida cotidiana.

Nesse processo de leilão público bilionário, uma frase do ministro Carlos Favaro coloca o enredo da importação do arroz no centro das temáticas de Ionesco: “Se tiver outro mecanismo que faça com que o abastecimento se regularize a preços normais, sem especulação, o governo está sempre aberto ao diálogo”, disse o ministro, admitindo que pode cancelar definitivamente o leilão.

Há um conteúdo burlesco nessa afirmação, se a confrontarmos com a realidade objetiva dos fatos, à qual qualquer competente gestor da coisa pública tem de estar atento para poder tomar decisões. Já foi provado, com base em dados e informações de renomadas fontes acadêmicas e de mercado, que jamais houve desabastecimento nem especulação de preços.

Dados diários do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), órgão da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq – USP), mostram que, em novembro de 2023, mês de pico da entressafra do cereal, a saca de arroz de 50 kg era comercializada por R$ 116. Em abril de 2024, o preço recuava para R$ 105. Em maio, com a tragédia do Rio Grande do Sul, o preço subiu para R$ 116, mas, em junho, com a entrada do arroz sequeiro, caiu para R$ 113. Essa curva nada tem de especulativo. Reflete o movimento do mercado num período de oscilação dos preços dos alimentos em geral. Tampouco, como alega o ministro Favaro, houve “abastecimento desregulado”. Não falta arroz nas prateleiras dos mercados.

Já o presidente da República, ao dizer que o governo “vai financiar áreas de outros Estados, produtivas de arroz, para não ficar dependendo de apenas uma região”, enriquece a narrativa surreal. Ao ouvirmos tal afirmação, parece que áreas como Santa Catarina, Mato Grosso, Tocantins, entre outros territórios onde floresce a rizicultura, ainda tenham de entrar no radar do Ministério da Agricultura e Pecuária.

Ao afirmar que, se no lugar do leilão de arroz existirem outros mecanismos de gestão passíveis de serem implantados, o governo desistirá da importação, Carlos Favaro parece desconhecer o campo da gestão pública.

Um caminho seguro que poderia ser trilhado pelo governo é transferir os R$ 1,7 bilhão destinados à importação do arroz para apoio ao produtor rural gaúcho, que precisa de crédito para recompor os campos de plantio e repor equipamentos. Vale lembrar que o solo empobreceu com a perda significativa de nutrientes levados pelas inundações. Sem solo fértil, evidentemente, haveria comprometimento da safra 2024-2025. Por isso, é preciso fazer gestão apoiando quem produz.

No plano real, essa é uma das tantas possibilidades que o governo tem para realizar uma gestão cidadã no cenário pós-tragédia climática.

Mas quando vemos um queijeiro ser habilitado num leilão federal, tendo arrematado um lote de importação de mais de 200 mil toneladas de arroz, fica claro que, em termos de gestão pública, o Planalto está nu.

 

Carlos Fernandes atuou como Secretário Executivo Municipal de Segurança Alimentar, Nutricional e Abastecimento de São Paulo.

Comentários

  1. O principal a ser pensado é o socorro ao agricultor, para recompor as suas terra e lavouras de arroz pois do contrário teremos que realizar leilões todos os anos para reequilibrar o mercado.

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